"Mais uma tarde sem jeito nenhum" - VIII
Plantas

"Mais uma tarde sem jeito nenhum" - VIII




Sentou-se na cadeira da esplanada, local que lhe agradava sobremaneira por poder optar entre estar sozinho ou observar com alguma tranquilidade quem por lá passava. Ter virado à direita quando saiu de casa ou ter caminhado cerca de trinta minutos até àquele “porto de abrigo”, não tinha passado de um gesto que o hábito cristalizou. No entanto, algo tinha sido diferente naquele dia. Apesar de ter tantas vezes feito aquele percurso, sempre que não tinha de ir trabalhar, notou que algo estava diferente. Depressa de apercebeu de que a diferença não estava no grito ou riso ou lamento, nem sequer nas janelas que, curiosas, olharam para ele, mas sim nele próprio, porque não há nada mais transformador do que o Olhar.
Tirou da mochila o pequeno caderno, também o lápis e esperou que o empregado por ali passasse. Não estava com pressa e também não queria usar o perpetuado “olhefáxavor”, acompanhado de um levantar de braço. E esperou um ou dois minutos, até ter ao seu lado o empregado de mesa, a quem pediu uma Água gaseificada. “Sai uma, com gás!”, disse ele, dirigindo-se ao colega que estava por detrás do balcão. Ao contrário de outros empregados, este, que se chama José, não vocifera os pedidos. Tem a voz bem colocada e projecta-a, como se num palco estivesse. É um tipo estranho, muito vivo mas discreto.

A água chegou antes mesmo de ele ter conseguido escrever duas ou três palavras no paciente caderno. Nem todas as palavras são como as cerejas, há algumas que têm um difícil parto e outras que morrem prematuramente. Construir um texto com palavras seguras e saudáveis é apanágio de apenas alguns. As palavras possuem uma personalidade vincada e mordem a mão a quem displicentemente as utiliza.
Começou por rabiscar alguns gatafunhos, antes que surgisse qualquer frase. Fazia sempre isso, não que tivesse qualquer habilidade para desenhar, mas por acreditar que assim as palavras se sentiriam mais aconchegadas, tal como acontecia junto do Era uma vez... nas histórias que lia em criança.
Ele sabia bem a dificuldade de começar a escrever, já o tinha tentado centenas de vezes e muitas delas lhe tinham deixado algum tipo de marca, que geralmente era de frustração. Esse era um sentimento que sempre o tinha acompanhado e ele tinha que o assumir como familiar, porque a família não se escolhe, calha-nos!

De repente, lembrou-se do que se tinha passado há cerca de uma hora atrás e pensou em escrever precisamente sobre isso. Mas, ao mesmo tempo, também isso lhe parecia muito pouco e ele não era nem detective, nem jornalista, para além de lhe causar um certo pudor utilizar-se do infortúnio alheio para conseguir escrever meia dúzia de páginas, que inevitavelmente iriam acabar no fundo de uma qualquer gaveta.
Fosse o que fosse que escrevesse, teria de surgir de dentro dele.




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