Ainda hoje permanece o mistério que envolveu a sua morte. Era o espião mais bem sucedido do seu tempo. Recebia todas as instruções através de uma caixa postal, que mudava de endereço todas as semanas, segundo uma equação de base logarítmica bastante complexa, memorizada aos 14 anos, momento em que se tornara conhecido pelos seus colegas de escola como “o base de dados”, tal era a sua facilidade em registar mentalmente tudo o que se dizia ou passava dentro e fora da sala de aula. Foi a partir desse momento que iniciou a sua actividade como espião. A sua primeira proposta governamental chegou-lhe dissimulada numa carta de amor, que recebeu em mão, entregue por uma colega de turma que, sem qualquer sombra de dúvida, também era Espia. Rudolfo era cirurgicamente preciso nos apontamentos que tomava e que de seguida os colocava em caixas-importantes, disfarçadas de caixas-não-importantes, guardando-as num local que, com receio de poder vir a ser descoberto, também mudava irregularmente. Sentia-se o guardião dos gestos dos que o rodeavam e dos que se cruzavam com ele e nem mesmo nos raros momentos de fragilidade pré-orgásmica a que submeteu com as poucas namoradas que teve, todas potenciais espias inimigas, claro, deixou transparecer algo que indiciasse a nobre e ultra-secreta missão de que estava incumbido. Nunca chegou a saber para quem trabalhava, conheceu ou se deu a conhecer a outros espiões e muito menos o quanto ganhava. O que se escrevia nos jornais era tudo manipulado. Nunca nenhuma comissão parlamentar teve acesso aos seus dados pessoais. Rudolfo escrevia quase sempre em código, para grande desespero dos professores que teve. Como consequência disso tinha apoio escolar acrescido, aproveitando esse tempo extra, que lhe dedicavam, para tomar notas complementares sobre a actuação dos professores. O destino dado às suas informações era, obviamente, secreto. Sabia no entanto que tudo funcionava bem. A regra número um era, por precaução, não existir qualquer tipo de eco relativo às suas mensagens por parte dos destinatários. Sabe-se que tinha um nome de código e também que fez questão de o esquecer, por questões de segurança, claro.
Quanto à sua morte…teria sido realmente suicídio? homicídio? Vestígios da Guerra-fria? Futurologia da UÇK? De uma coisa podemos ter a certeza: Rudolfo era um espião realmente digno desse nome, chegando a levar ao extremo essa sua nobre missão. Rudolfo espiava-se a si próprio. Escrevia, gravava e, quando era possível, filmava cada passo seu para assim ter provas acrescidas de defesa ou de ataque em causa própria. Isso não era nada fácil, tentar não se autodenunciar, espiar-se sem saber que estava a ser espiado. Para que todo o seu trabalho não perdesse o sentido, ele arranjou uma espécie de duplo, com identidade falsa e morada desconhecida, que o seguia a cada instante. Rudolfo questionava-se. Que escreveria o ‘outro’ sobre ele? Com certeza que trabalharia para o inimigo. Aonde é que estava o inimigo? Pagariam mais ao ‘outro’ do que a ele próprio? Rudolfo sabia que não estava seguro e o ‘outro’ sabia bastante mais do que ele, porque apesar do esforço que fazia nesse sentido, não lhe conseguia escapar. Se calhar foi o ‘outro’ que o matou. Na verdade, ele sentia-se ameaçado já há algum tempo, pelo menos segundo o que constava nos apontamentos que o ‘outro’ tomara sobre ele e aos quais ele, através de um complicadíssimo processo de contra-espionagem, tinha conseguido ter acesso. Até agora pouco mais se sabe. Calcula-se que, algures numa caixa postal, com número de base logarítmica desconhecida e em linguagem criptada, está encerrada a verdade.
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